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Um apartheid sem muros

Da médica ginecologista e obstetra Liduina Rocha, eis um texto para refletir no meio dessa pandemia. Nas palavras dela, há “um apartheid sem muros” nas cidades. Nas linhas, ela faz um paralelo entre pobres e ricos, além de privilégios e a necessidade de sair de casa, no cenário atual, para garantir o pão de cada dia. Confira:

A gente diz fica em casa, mas é preciso dizer para quem estamos falando isso: especialmente para quem pode e deve, e decide não ficar! E para os que, para sobreviver, não ha outro lugar que não seja a rua, que as políticas públicas as/os tirem deste lugar sem os responsabilizar por uma escolha que não é delas/deles!

Da minha janela vejo a cidade que passeia, e as pessoas que a servem. Há cores que as separam. Um apartheid sem muros. Brancos vamos para a rua porque é preciso umas horinhas de diversão. Negros não vão, estão, são a rua! Há chance de todos e todas adoecermos.

Uns, brancos,acham que vão para hospitais privados, sem perceber que não há mais vagas nestes locais. Confiam em privilégios de raça e desconfiam da morte.

Outros, negros, vão para as cadeiras de plástico brancas das upas e unidades de saúde, numa assistência quase heróica dos profissionais de saúde, mas com chance muito reduzida de sair dali.

E quem os atende? Nós profissionais de saúde. Nós que estamos expostos a cada pessoa que se expôs na cidade! Cada risco corrido, por irresponsabilidade, egoísmo, ou por necessidade premente de comer e sobreviver sem que as políticas públicas cheguem até onde deveriam estar.

Nós estamos nos locais de assistência, mas também nós não estamos em igualdade de condições! Eu pude comprar protetor facial, máscaras adequadas, posso mudar de roupa a cada saída para atendimento, quantas vezes forem necessárias em um dia (ontem, por exemplo, eu precisei sair e voltar 6 vezes para casa).

É preciso que se entenda que há uma rede de profissionais para que haja atendimento. Se você só vê o médico:médica, por favor, olhe melhor! Há as/os enfermeiros, as/os técnicos de enfermagem, as/os funcionários da limpeza.

E nesse lugar invisível há muito menos EPIs, muito, muito mais mulheres, e a cor da pele é negra, como é a de quem está na rua porque precisa sobreviver.

Então, é preciso que se diga que seu passeio, sua compra, seu condicionamento de consumir pode matar! E o tempo e a ciência vão mostrar que pode matar muito mais quem é pobre e negro, e na área da saúde quem é pobre, negra e mulher!

Como são quase todas as mortes evitáveis no mundo!

Dra. Liduina Rocha
Ginecologista e obstetra

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